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A clínica fenomenológica existencial

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Para aquelas e aqueles interessados em saber mais, tentei apresentar aqui essa orientação clínica da maneira mais simples possível.​

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Fenomenologia e existencialismo

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Para resumir, muito, a fenomenologia é um método para apreender e compreender o que está diante de nós: a experiência vivida, a “realidade” tal como ela se dá em nós. É um movimento filosófico do século XX que procura fazer da filosofia uma "ciência" (um modo de acesso ao conhecimento rigoroso).

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O existencialismo é outro movimento, intimamente ligado à fenomenologia, ainda que tenha começado antes, que compreende a existência no sentido de sua raiz latina 'existere': estar fora de si mesmo, lançado no mundo. Ele traz elementos de compreensão sobre a condição humana, seus dilemas e vicissitudes, que as ciências naturais não conseguem apreender: a liberdade, o sentido, a finitude, a angústia, o tédio, o isolamento, a relação com os outros, etc. Dentre os grandes pensadores desses dois movimentos filosóficos, citemos Edmund Husserl, Martin Heidegger, Søren Kierkegaard, Jean-Paul Sartre, Maurice Merleau-Ponty.

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Não imaginem que se trata de filosofia incompreensível que se perderia no mundo das ideias e na metafísica, é muito concreto. Também não se trata de filosofar durante as sessões de psicoterapia: o clínico se apoia nesses conhecimentos para identificar e trabalhar o que é importante.

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A clínica fenomenológica existencial

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Esses conhecimentos atravessam toda uma corrente da psicologia e da psiquiatria ao longo do século passado, até os dias atuais, e permitem uma outra compreensão das psicopatologias – diferentes daquelas da psicanálise freudiana e dos behavioristas, muito populares na época. Uma variedade de práticas clínicas e pesquisas surgem então, tendo como questão central a compreensão da relação com o mundo, a história vivida e singular do sujeito: a tradição fenomenológica existencial não é um 'sistema' dogmático, seria mais um reservatório de ideias e considerações sobre a existência e as psicopatologias.

Entre as práticas, encontramos notadamente a Daseinsanalyse de Ludwig Binswanger e Médard Boss, a psicoterapia existencial de Irvin Yalom, e a psicanálise existencial, mais centrada na obra de J.P. Sartre. Outras terapias também se apoiam na fenomenologia e no existencialismo, como a Gestalt, a Logoterapia e a prática contemporânea da Abordagem Centrada na Pessoa (clínica Humanista). Algumas considerações são até retomadas na 3ª geração das terapias cognitivo comportamentais.

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Na corrente fenomenológica existencial, ainda que haja convergências com a psicanálise 'tradicional', não consideramos o complexo de édipo como algo universal nem compreendemos o inconsciente da mesma maneira. É claro que fazemos muitas coisas sem perceber e que temos uma tendência à autoilusão, mas o inconsciente freudiano é particular e se encaixa em uma estrutura psíquica hipotética. A fenomenologia desconfia dos pressupostos e das hipóteses, que são, em última análise, crenças justificadas a posteriori. Isso não significa que a fenomenologia rejeite as ciências, mas que, para ter acesso ao mundo vivido, as ideias preconcebidas devem ser colocadas entre parênteses: o ser humano está em relação com o mundo, não pode ser reduzido a uma série de componentes que poderíamos isolar, compreender e modificar à vontade. Além disso,  a psicanálise "tradicional" tende a esquecer o corpo - visto como separado da psique - e a considerar o eu como uma entidade estanque ao mundo exterior. Pensamos que não existe dualidade corpo-mente, que devemos dar uma atenção ao corpo, e que o eu se constrói em função das interações do sujeito com o mundo, ou seja, um horizonte histórico que não se limita a primeira infância e às interações com o círculo familiar.

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Para lhe dar uma ideia de como podemos compreender o mal-estar, aqui estão alguns exemplos:

  • Uma falta de abertura ao mundo, onde as potencialidades são bloqueadas. Pode ser um fechamento para a possibilidade de se projetar no futuro. Na verdade, a depressão é entendida como uma experiência de vida onde temos a impressão de que não temos mais tempo, e de que não há mais espaço. Devemos então buscar a rede de sentidos por trás dos comportamentos patológicos e dar por exemplo uma olhada do lado dos vínculos: vínculos com os outros, com os valores, com o mundo concreto, consigo mesmo, etc..

  • A neurose vista como ausência ou insuficiência de sentido: somos “máquinas” de fabricar sentidos e, por vezes, não conseguimos. Pode faltar sentido após uma situação experimentada como dolorosa: somos então bloqueados. Também pode estar ausente no presente e nos impedir de encontrar um caminho no qual estaríamos engajados no que estamos fazendo.

  • A ansiedade e depressão vistas como consequência de estratégias de evitação diante de características da existência como a liberdade e a morte. A inautenticidade decorre também dessa recusa em olhar de frente a angústia existencial: em vez de ser o autor de sua existência, o sujeito se esforça demais para atender às demandas externas a ele. Devemos então identificar as proteções que certamente protegem e permitem funcionar, mas impedem que vivamos “nossa vida” plenamente.

 

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O trabalho psicoterapêutico

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​“Não importa o que fizeram de mim, o que importa é o que eu faço com o que fizeram de mim”

Jean-Paul Sartre

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A mensagem dessa citação pode parecer um pouco difícil de engolir, mas, de fato, não podemos mudar o que nos aconteceu e somos a síntese das nossas vivências, das nossas experiências e interações com o mundo (família, sociedade, cultura, escola, natureza, valores e crenças de nosso tempo, etc.). Bem depois dos filósofos, as neurociências também constataram que somos, acima de tudo, esculpidos por nosso ambiente. Assim sendo, temos que lidar com a nossa maneira de ser, mas sem esquecer que estamos sempre em devir: outras experiências buscando novos possíveis podem mudar o rumo das coisas e a nossa forma de apreendê-las.

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Consequentemente, não se pode compreender o sofrimento psíquico de alguém sem entender sua história e seu contexto de vida. Devemos, portanto, explorar o que aconteceu, o que está acontecendo, mas também o que poderia acontecer, ou seja, as possibilidades de projeção no futuro - a psicanálise 'tradicional' olha apenas para o passado.

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Além do mais, o sofrimento nem sempre é redutível a uma questão individual como, por exemplo, um conflito intrapsíquico. O mundo exterior ao indivíduo, real, deve ser analisado, compreendido e levado em consideração tanto quanto o mundo interior do paciente. Inclusive, hoje, muitos de nossos contemporâneos sofrem de um mal-estar intimamente ligado às características de nossa época complexa e conturbada. É então preciso procurar uma "tangente". O filósofo e psicanalista franco-argentino Miguel Benasayag traz elementos para tentar responder ao mal-estar contemporâneo em seu livro "Clínica do mal-estar – A "Psi” diante dos novos sofrimentos", publicado em 2015 na França. Traduzi esse livro em português e apresento suas reflexões em seminários universitários e através de cursos para colegas psis.

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Como vimos, é necessário compreender o todo para compreender o(a) paciente e assim o(a) ajudar a se conhecer e se situar no mundo: é uma condição para identificar, com o(a) paciente, uma tangente que lhe permita encontrar uma estabilidade e um agir, em função de suas singularidades, do contexto no qual vive e do sentido que atribui às coisas.

Esse trabalho de exploração e de compreensão se faz em dupla, dialogando e compartilhando saberes e experiências: a terapia é acima de tudo um encontro onde o “falar verdadeiro”, o estabelecimento de um vínculo e de uma base comum são primordiais. O terapeuta ajuda a pessoa a se perceber, a se conhecer na sua relação com o mundo, a compreender, abandonando a relação de dominação terapeuta-paciente: o(a) paciente não é um objeto passivo a consertar e o terapeuta não é dono da verdade. Aliás, o psi não sabe, ele procura junto com o(a) paciente. Apenas ele, ou ela, pode identificar o que sente, o que viveu, o sentido que deu às coisas, o que quer, e pode fazer suas escolhas.

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Com a pandemia Covid-19, fui forçado, como muitas pessoas, a trabalhar apenas online. Finalmente, essa situação me permitiu me adaptar bem a essa modalidade e apoiar pessoas, em francês ou em português, em muitos territórios: França, Brasil, Caribe, Guiana francesa. Assim que a situação permitir, retomarei minhas consultas no Rio de Janeiro, sem, no entanto, abandonar a modalidade online, que não só é válida em muitos casos, mas também apresenta vantagens.

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Supervisão

 

Embora não seja obrigatório ter um supervisor, é mais do que desejável. A prática clínica nos confronta com histórias às vezes difíceis que nos impactam fortemente, e nos confrontam à complexidade: é, portanto, fácil se perder. A supervisão consiste em trocas regulares com um analista muito experiente, a fim de melhor compreender e apoiar os pacientes, para progredir, para monitorar nossa prática, etc. Esta é uma garantia para os pacientes. Faço supervisão online com o Prof. Dr. Miguel Benasayag, psicanalista fenomenólogo e filósofo radicado em Paris, e participo também de um grupo de supervisão no Rio de Janeiro.

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