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Um contraponto à centralidade da morte em Martin Heidegger e Irvin Yalom

  • Foto do escritor: Cyril Regnaud
    Cyril Regnaud
  • 20 de abr. de 2023
  • 4 min de leitura

Atualizado: 29 de mai.

Nota : esse post é mais destinado aos colegas do que aos pacientes.


Na vertente fenomenológica, não há unanimidade sobre a questão da centralidade da morte na vida humana. Miguel Benasayag é um dos fenomenólogos que discordam dessa centralidade. Seguem alguns argumentos extraídos do seu último seminário (1), e do seu último livro (2).


No seminário ocorrido em 12 de abril de 2023, ele faz as seguintes colocações (transcrição reformulada, tradução livre):

Heidegger coloca o homem como pastor do ser, que vai à frente da vida. Há um antropocentrismo, onde a singularidade de cada homem é o seu rendez-vous (encontro) com a morte. Há uma centralidade do evento da morte.

Com outros filósofos, procura-se saber do contexto epocal para situar o pensamento. No caso de Heidegger, tende-se a procurar esquecer da sua realidade objetiva e histórica, tenta-se esquecer que ele tinha uma conexão com o nazismo. Quando dizemos que minha angústia é meu saber sobre meu ser mortal, a consequência é de virar as costas a todas as situações pois se tornam secundárias em relação à morte.

Para mim, é muito suspeito que, enquanto a fumaça se elevava de Auschwitz, a única angústia que tinha Heidegger era o ser-para-a-morte. Penso que lhe permitia virar as costas às situações concretas. Para mim, a angustia existencial é devida à fragilidade das situações e não a um elemento transsituacional que deveria ordenar todos os outros.

Para I. Yalom, a angústia existencial é o ser-para-a-morte. Mas, na minha experiência clínica, nunca vi alguém que esteja angustiado com a morte. Vi pessoas, que, falando da morte, evitem as angústias existenciais de cada situação. A angústia da fragilidade da situação e não de um universal abstrato como a morte. É um grande universal mentiroso: se, diante de qualquer coisa que me aconteça, minha angústia é a morte, trata-se de uma caricatura.

Para Sartre, a angustia existencial é tecida da atualidade: caso eu esteja sem dinheiro para pagar a conta de gás, passa por aí. Com Heidegger temos: em que me importa a conta do gás se eu sou para a morte.

Ainda para Sartre, a morte é um acidente; enquanto para Heidegger é o epicentro. Quando queríamos atacar um quartel durante a ditadura [na Argentina], a morte podia ser um acidente, assim como podemos morrer indo comprar pão na padaria. Para mim, é o desejo de vida que, nas situações concretas, encontra a morte como acidente. A morte é um elemento a mais da situação.


Enfim, no livro "Les nouvelles figures de l’agir", podemos ler :


“Experimentar o comum implica endossar essa não coincidência de si mesmo para si mesmo, que está no fundamento de uma ética situacional: não há acesso possível ao comum sem aceitar essa falha existencial dada pela parte intensiva que faz com que o meu corpo, enquanto minha situação, nunca se limita ao meu próprio corpo. Fazer do não-saber sobre o que pode um corpo o coração da ética equivale a recusar esse devir agregativo que consistiria em ser apenas suas partes extensivas. Somos o que não escolhemos ser, e somos responsáveis ​​pelo que não temos a menor possibilidade de escolher. O esforço para ser é um puro movimento de autoafirmação. E é na possibilidade de assumir esse excesso de potência que está em jogo a diferença entre viver o próprio destino ou padecê-lo como uma fatalidade. O ser do humano é assim um "ser para a vida", e toda obsessão com a morte é o que o afasta de sua liberdade, como o escreve Espinoza na sua Ética: "O homem livre não pensa em nada menos que a morte, e a sua sabedoria é uma meditação não da morte, mas da vida.” A obsessão pela finitude, o medo de que se cesse, é o caminho mais rápido para que as coisas realmente cessem. O discreto, o frágil, o efêmero são o oposto da imortalidade, mas certamente não da eternidade.

[...]

O psiquiatra e psicoterapeuta existencialista norte-americano Irvin Yalom (nascido em 1931) postula que o eixo central que organiza a vida psíquica e cultural dos humanos se estrutura em torno da angústia da morte ligada à consciência de nosso ser mortal. Ao criticar o reducionismo freudiano, que opera como um funil em direção ao pansexualismo, Yalom procede, surpreendentemente, da mesma forma ao determinar um pan-moralismo universal. Tanto que, caricaturando um pouco as consequências de tal abordagem, teríamos que reconhecer em cada atividade humana, inclusive nas mais nobres, tantos modos de sublimação não mais de nossa libido sexual, mas de nossa angústia de finitude. A experiência clínica, a qual está longe de faltar ao Yalom, no entanto, mostra, pelo contrário, que quando uma pessoa evoca seus problemas como resposta ao medo de desaparecer, muitas vezes é para evitar suas angústias diante das situações da vida.

Os humanos participam constantemente de situações em que o X que ordena a situação nada tem a ver com a morte individual ou com o sexo. A pretendida angústia diante da morte é muito mais a expressão de um verdadeiro recalque dos desejos e desafios aos quais a vida nos convoca. Ao se dar uma finitude definitiva, o indivíduo que se pensa como finalidade e causa de si mesmo condena-se a uma sobrevivência feita de medos e frustrações, pois tudo ao seu redor inevitavelmente acaba cessando. O mundo em que vive lhe escapa, a ponto de o próprio mundo se tornar escuro e hostil para ele. Sob a aparência de certeza absoluta, essas falsas meditações sobre o fato de que tudo um dia termina, na verdade, referem-se aos mecanismos de má-fé pelos quais alguém se ausenta de si mesmo e das situações presentes” p. 215-218.


Boas reflexões a todxs !!



(1) Seminario do dia 12 de abril de 2023 : https://www.youtube.com/watch?v=Qw632j0HuoI&t=4297s

(2) Les nouvelles figures de l’agir, M. Benasayag, B. Cany, Ed La découverte, 2021

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