Sobre a vivência de uma suposta aceleração do tempo
- Cyril Regnaud

- 14 de fev. de 2023
- 4 min de leitura
Às vezes, temos dificuldades em fazer tudo o que gostaríamos em um certo período de tempo. Diremos então que o tempo passou rápido demais. Acontece, às vezes somos obrigados a correr e, neste caso, está tudo bem...
Mas quando essa impressão se torna crônica, há algo a mais acontecendo: algo da nossa época torna possível essa queixa. No livro “As novas figuras do agir – Pensar e engajar-se a partir do vivente”, Miguel Benasayag e Bastien Cany (2021) propõem uma compreensão fenomenológica dessa experiência dolorosa que se expressa pela impressão de que o tempo acelera.
Esta obra é extensa e complexa, não é possível ser exaustivo aqui. No entanto, segue um pequeno resumo acompanhado de dois parágrafos (em tradução livre):
Segundo os autores, o mal-estar que leva a se queixar do tempo que acelera remete a um esmagamento de dimensões da existência pelas injunções permanentes para “funcionar bem”, ou seja, apresentar alto desempenho, ser adaptável e avaliável, seja nos negócios ou em nossa vida.
Por outro lado, o imediatismo, ligado à ideia do bom funcionamento, provoca um curto-circuito na nossa temporalidade complexa: ela não é linear, é regulada por ritmos e ritos (nem que seja, por exemplo, caminhar até a padaria) que muitas vezes serão considerados inúteis pelo ideal de funcionamento utilitarista, e inclui passado, presente e futuro (e não um presente saturado).
Enfim, o mundo digital tenta nos fazer acreditar que ele seria “o mundo”, e tende a nos transformar em autômatos que gerenciam informações. Lembrando que “informação” não significa “conhecimento”: para que haja conhecimento, é preciso que haja corpos situados que experimentem, sintam, troquem, etc. Lembremos também que muitos de nossos contemporâneos, por estarem angustiados, correm atrás de informações (que podem ser fake) pensando que elas seriam decisivas para a condução de suas vidas. Só que não: as informações podem ser úteis e importantes, mas são mais as situações concretas que nos convocam e orientam nosso agir.
É assim que nos encontramos num modo de ser que “padece”, desconectados de nós mesmos (nossos tropismos, nossas afinidades eletivas, nossa opacidade, nossas multiplicidades contraditórias, nossa história) e das situações concretas nas quais evoluímos: daí, numa modalidade um pouco “acima do chão”, nos agitamos e temos a impressão de que o tempo nos escapa.
Nota: funcionar não é um problema em si, é uma dimensão de nossa vida. O problema é o seu caráter exclusivo.
“A retórica gerencial está repleta dessas injunções à adaptação individual e coletiva em um ´mundo em mudança´. E, para se adaptar, o homem e a mulher do ´alto desempenho´ de nossa época terão que se considerar como uma superfície lisa e edificável, dispostos a adquirir - e se desfazer conforme as exigências da macroeconomia – as competências úteis ao sucesso em suas vidas profissionais e íntimas. Duas esferas que, aliás, tendem a se tornar uma só. Para participar deste grande empreendimento de “liberação de energias” todas e todos terão, em primeiro lugar, de aprender a se destecer, fazendo tábula rasa de todo desejo e de toda afinidade. Tratar-se-á de livrar-se de tudo o que possa impedir a mobilidade de cada um: as profissões, os estatutos, o coletivo e os direitos sociais - cuja reivindicação passa hoje por expressão de um perigoso arcaísmo reacionário. A empregabilidade e a inclusão na sociedade fluida têm este preço: o esvaziamento de si para se tornar um perfil puro avaliável e adaptável.
Ao imperativo moralizante soma-se agora a realidade dos fluxos das redes digitais que esperam que indivíduo se comporte como um segmento do sistema: uma espécie de caixa preta que recebe inputs e emite outputs, reativa em suas escolhas como em suas respostas ao imediatismo de seu ambiente.
O problema é que esse indivíduo continuamente conectado se apreende apenas em pura exterioridade, exilado de si mesmo e da potência própria do vivente. Porque quanto mais somos tomados por uma reação adaptativa, tentando ´ganhar tempo´, mais nos enfraquecemos ao nos submetermos a mecanismos de sofrimento e destruição. Esse processo deletério corresponde à perda sucessiva das dimensões de intimidade, as da autoafecção dos corpos que entram num funcionamento sob o modo de um padecer. Em nome da adaptação, nossas sociedades correm o risco de cometer o erro fatal de confundir o agir com a agitação, a existência com o funcionamento” (p. 150-151)
“Os artefatos tecnocientíficos - que hoje nos são apresentados como a vida - e a inteligência artificial são avaliados em função de sua capacidade de reagir na sincronia do instante. No entanto, quanto mais os dispositivos tecnológicos interagem em um presente instantâneo, mais na realidade eles se afastam do vivente. Essa temporalidade complexa, da qual o tempo linear é apenas uma das dimensões, determina um espaço virtual de intimidade consigo mesmo no qual se desdobram os processos de autoafecção do vivente. As diversas tentativas de colonizar esse espaço de intimidade pelos ritmos do relógio sempre trazem consequências deletérias. Ignorar os laços sutis entre os ritmos do vivente e os ritos que são a sua expressão simbólica, individual ou social, conduz inevitavelmente a esta promiscuidade que ataca e elimina esta intimidade própria do vivente. Na dimensão humana, esse fenômeno de promiscuidade toma a forma dessa vivência angustiante de uma suposta “aceleração do tempo”. Este enunciado, em última análise, nada mais é do que a expressão da colonização do íntimo pela promiscuidade funcional: portanto, não é o tempo que acelera, mas sim as nossas dimensões de existência que se reduzem” (p. 140-141)



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