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Entrevista de Miguel Benasayag sobre a situação do coronavirus

  • Foto do escritor: Cyril Regnaud
    Cyril Regnaud
  • 23 de mar. de 2020
  • 5 min de leitura

Atualizado: 27 de abr. de 2021

Essa entrevista (original em francês aqui) foi publicada na revista francesa Philosophie Magazine, em 23/03/2020.

Miguel Benasayag é psicanalista, filósofo, e pesquisador.

Tradução livre.

Como vive o confinamento?


Miguel Benasayag: Estou em casa, em Paris, com minhas duas filhas e minha esposa. Não estou com medo, mas estou inquieto, pois essa crise tem duas faces. Um aspecto mundial, histórico, social, mas também um aspecto mais individual. Os monstros acordam. Cada um projeta na catástrofe suas próprias inquietações. Com o confinamento, o risco é grande de ver se desfazer rapidamente todas nossas estruturas. De repente, estamos diante de nós mesmos como em uma caricatura à porta fechada. Para quem vive com outros, o inferno são os outros; para quem vive sozinho, o inferno é si mesmo.



Na experiência do confinamento como no distanciamento, o corpo retorna

subitamente no primeiro plano.


Para todos os projetos culturais solidários e ou sanitários, a única resposta para justificar uma recusa foi até então: “É bom, mas não comtempla a realidade”. Aos mesmos médicos e enfermeiros que aplaudimos hoje às 20h00 – também já atuei no meio hospitalar por mais de trinta anos – e que alertavam sobre a necessidade de ter meios, pequenos gestores replicavam: “Sim, mas há a realidade!”. Nós vivemos vinte e cinco anos de delírio pós orgânico e trans humanista. Criamos nossos avatares nas redes sociais. Houve um esquecimento do corpo. Na linguagem de Gilles Deleuze, falaríamos de “desterritorialização selvagem”: a desmaterialização de nossas identidades, o arrancamento dos vínculos com a natureza e com outrem, mas em proveito de nada mais. Hoje, os corpos sofrem enquanto o rei está nu. Não sabemos quantos mortos haverão com a epidemia, mas, de repente, a realidade dos corpos doentes abala a pretendida “realidade econômica”. Ela revela a demolição do sistema de saúde na Itália, seu esfarelamento na França. O que é uma medicina guiada pelas únicas preocupações econômicas, como na América latina? São pessoas que morrem por falta de material e de pessoal. Porém, a crise é também uma extraordinária oportunidade. Pela primeira vez, a ameaça se materializa ao mesmo tempo, para o mundo inteiro.


Trata-se realmente de uma frente comum?


Não acho que estejamos em guerra ou que o vírus seja um inimigo. A pandemia é apenas uma consequência da promiscuidade entre as espécies e da destruição do ecossistema. Não é um acidente. Pensar essa desregulação como uma guerra, é permanecer preso das causas mesmas do problema. Não se trata de vencer, mas de reencontrar um equilíbrio. Foi preciso que bilhões de pessoas se encontrem isoladas para descobrir o quanto o ser humano é um ser de vínculos. Esse evento histórico maior oferece uma bifurcação: por um lado, ele convida a não mais aceitar a única lógica econômica, a tomar em conta os indivíduos, que não são “ruídos” no sistema. Agir a partir dessa experiência seria muito positivo. Mas, por outro lado, os detentores do biopoder aprenderam uma coisa: eles podem mandar seis bilhões de indivíduos em casa, com uma servidão voluntária total. O que tornou visível a ameaça como fato maior, não são microscópios, mas a implementação de um dispositivo disciplinar. O pós-confinamento será muito delicado, e ele está em jogo hoje.


O confinamento não é uma medida legítima de saúde pública?


Coloco essa bifurcação como um elemento de complexidade, sem maniqueísmo. Podemos até lamentar que o confinamento não tenha sido decidido mais cedo! Mas o problema que nos acostumamos a viver sob ameaça. Realizar esse confinamento era necessário, apesar de que obedecer seja muito ansiogénico, no sentido que nos tranquiliza, mas nos adormece ao mesmo tempo. Freud lembra que durante a guerra, não houve neurose porque, de repente, na urgência, a situação se torna binária. Todo mundo sabe onde é o alto, onde é o baixo. A questão deixa de se colocar. Mas é preciso permanecer vigilante.


Como?


A crise revela que a vida individual e a vida social são duas faces da mesma moeda. Uma brecha se abriu, da qual é preciso aproveitar, relembrando o que não paro de escrever: somos seres de vínculos, territorializados, soldados a um mundo comum. Deleuze escreve ainda que os indivíduos são ilhas no mar, mas que as ilhas são dobras do mar.


Essa experiência do comum é também uma experiência da fragilidade. Como lidar?


A experiência do comum e da fragilidade são sinônimos. Se pertenço ao comum, só posso experimentar a fragilidade da vida. A fragilidade não é a fraqueza. Ser forte ou fraco é a problemática dos indivíduos isolados. Como pai, por exemplo, sou indissoluvelmente ligado às minhas filhas. Minha vida depende do que lhes acontecem. Esse vínculo pede para mim de assumir uma fragilidade, que acrescenta meu ser.


Como cultivar essa fragilidade?


Fiquei enjaulado outrora na Argentina, durante a ditadura e não posso me impedir de fazer uma ligação com a prisão. Haviam três grupos: aqueles que eram quebrados e destroçados; os fanáticos que sabiam pra onde ia a história; enfim um grupo informal constituído de todos aqueles que assumiam a vida na cadeia com uma incerteza absoluta. Ninguém sabia quem sairia, nem quando. O que aconteceu? Decidimos estudar. Não era ocupacional. Tratava-se de pensar o possível da situação. Para muitos o isolamento será difícil. Depois de um ou dois meses de confinamento, as consequências para a saúde mental e física podem se tornar severas. Mas para aqueles que conseguirão em não se deixar dissolver, em não ceder às pulsões fóbicas ou à depressão, para esses terão conseguido se ordenar apesar do sofrimento, essa experiência se tornará talvez um pilar na sua existência.


Quais são as suas recomendações?


É primordial cuidar de uma ordem do dia pois, com o confinamento, progressivamente o desejo se esvanece. O que parecia tão interessante de ler quando o tempo faltava não é mais tão desejável quando o tempo abunda. Manter uma agenda dispensa de se perguntar se a vontade está presente. Também, é preciso aceitar uma disciplina exterior a si, e se forjar um pequeno exoesqueleto através de um exercício ao mesmo tempo mental e físico – não se pode esquecer o corpo! Esse esqueleto exterior, um tipo de carapaça, nos garante uma estrutura, uma unidade psíquica e corporal quando nosso cotidiano ou nosso ambiente se esfarelam. Enfim, convido a tomar cuidado: as redes sociais são uma ajuda, mas também um fosso onde se sucedem as imagens e conversas sem intuito.


Qual leitura você aconselha?


A Peste [1947], do Albert Camus. A última frase diz em substância: todos aqueles que não podem ser santos podem ser médicos. Ajamos para desdobrar os possíveis. Espinoza o diz de outra maneira na Ética [1677]. Ele lembra que nossa potência de agir depende de nossa capacidade em ser afetado pelo mundo.

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