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Vontade VS Desejo

  • Foto do escritor: Cyril Regnaud
    Cyril Regnaud
  • 7 de fev. de 2023
  • 7 min de leitura

Quis traduzir esse capítulo do livro "Les nouvelles figures de l'agir" (As novas figuras do agir) de Miguel Benasayag (2021), que trata da tendência, na nossa época, em substituir o desejo por questões motivacionais, em convidar as pessoas a funcionarem em vez de existirem. Espero que seja compreensível : é um livro complexo e são 160 páginas antes desse capitulo.

Na verdade, seria muito bom editar esse livro no Brasil, é um tijolão a mais no edifício da fenomenologia. Se alguém souber de um editor que poderia se interessar, favor me avisar! Não se trata de psicologia clínica mas pode ajudar muito os psicólogos que se apoiam na fenomenologia...


Se eu tiver tempo, traduzirei outras partes. Segue uma primeira versão da tradução livre (que deve conter erros, perdoem meu jeito afrancesado de traduzir...) :


Quando a vontade substitui o desejo - (segundo capítulo da Parte 5 chamada "A existência reduzida ao funcionamento")


Nenhuma necessidade de pesquisar muito para ver os efeitos desse deslocamento do que era a figura do agir na modernidade. Um de seus sintomas imediatos se expressa diariamente na clínica psi. Ele toma a forma dessa queixa repetida mil vezes por pacientes vítimas do que eles próprios chamam de “falta de motivação”. Os nossos contemporâneos fazem assim a dolorosa experiência de não poderem dar seguimento concreto ao que eles acreditam, no entanto, desejar. Tudo se passa como se, em meio ao deslocamento cada vez maior das partes que até então compunham o sujeito, permanecesse um pequeno “eu” flutuante, tentando bracejar na superfície de uma série de tropismos e pulsões agora desatados. Este “eu” persiste na ilusão de que poderia, por vontade própria, unificar essas tendências doravante inscritas numa evolução agregativa.


Desde sempre, o aparato do agir moderno sempre reconheceu essa figura periférica superficial chamada “eu”. Nessa perspectiva, o corpo age, o desejo deseja, nossas sensações nos mobilizam e somente depois uma instância afirma: “Eu quem decido, eu quem penso.” Tanto que, apesar da dissolução dos processos de individuação próprios à modernidade, esse pequeno “eu” se obstina em permanecer no palco apesar da cortina já ter sido fechada. Mas seria surpreendente se esse “eu”, que não está na origem nem do movimento nem do desejo, conseguisse unificar, à força de volição, coachs e aplicativos para smartphones, o que a época desteceu. Para dizer a verdade, seria igualmente surpreendente se esse "eu" pudesse pensar, como Nietzsche havia pressentido em sua crítica ao Cogito ergo sum: "Se eu analiso o processo expresso pela proposição 'eu penso', obtenho toda uma série de afirmações temerárias que são difíceis, talvez impossíveis de comprovar; por exemplo, que sou eu quem pensa, que deve haver um algo que pensa, que o pensamento é o resultado da atividade de um ser concebido como causa, que existe um 'eu', enfim que o que deve ser entendido por pensamento é um dado já bem estabelecido - que eu sei o que é pensar. [...] em relação à superstição do lógico, não me cansarei de sublinhar um pequeno fato que esses supersticiosos relutam em admitir, a saber, que um pensamento vem quando quer, e não quando ’eu’ quero; é, portanto, falsificar os fatos que dizer : o sujeito 'eu' é a condição do predicado 'pensar' ” (2).


Se o "eu" não pensa, é porque na verdade o cérebro também não pensa. Essa massa nervosa, por mais complexa e refinada que seja, não fabrica o pensamento como o fígado secreta a bile. O cérebro e o corpo, articulados em uma combinatória múltipla que inclui a linguagem e a cultura, participam da produção do pensamento. Tanto que, seguindo Nietzsche, já seria se aventurar demais em dizer que “há algo que pensa”. Na melhor das hipóteses, deveríamos nos contentar em dizer que “se pensa”.


Obviamente não se trata aqui de afirmar que a vontade se opõe ao desejo. Ao contrário, ela designa o esforço que podemos fazer para manter nossas afinidades eletivas. Os problemas surgem quando tentamos substituir pela vontade o que o desejo desertou. Substituímos então, aos possíveis oriundos dos corpos, vontades adulteradas de felicidade e de vida pré-fabricadas, cuja oferta geralmente precede a demanda. Mas esse querer dissociado está ao oposto de toda ética: ele solicita a moral e a disciplina para tentar compensar desde o exterior o enfraquecimento de nossas dimensões íntimas. É sobre esse vazio que os novos vendedores de vontade, coachs de todos os tipos e especialistas em “desenvolvimento pessoal”, fazem prosperar seus negócios. E se é verdade que o coaching funciona de um ponto de vista utilitarista, é sempre na forma de mecanismos disciplinares que tentam alienar o que resta da pessoa para colocá-la a serviço de um bem adaptativo: pensem no seu bem, no que diz respeito ao desejo, podem voltar mais tarde. Seguindo o que é determinado como um bem, aprendo a desejar o que é aceitável desejar e, sobretudo, o que me é mostrado como sendo desejável. Este é o preço a pagar para acessar à tranquilidade absoluta, finalmente liberta dos meus tropismos sempre múltiplos, contraditórios e inquietantes.


Esses novos comissários políticos exigirão que o valente militante do individualismo seja feliz. Propõe-se assim aos perfis encontrar sentido em sua alienação. Nesse auto-apagamento, apesar do sofrimento, o sujeito disciplinado por trás do perfil encontra aquele gozo profundo do qual fala a psicopatologia: o sistema oferece a todos aqueles que não se contentam em desfrutar de seu poder e conforto, mas sobretudo àqueles que não têm poder nem conforto, uma série de técnicas para ser feliz apesar de tudo, ou melhor, para além de tudo. Nossa época nos instala em um modo de vida onde todos, como o Sísifo de Camus, não têm outra aspiração senão fazer valer seu "direito de ser feliz". À grande promessa coletiva de progresso sucede-se assim uma miríade de patéticas micropromessas de realização pessoal: teremos, no mesmo plano, o direito de consumir, de "ter um filho", de mudar o nosso fenótipo, de destruir a natureza (desde que possamos pagar) e, sobretudo, o direito à felicidade no trabalho, na vida de casal, nos lazeres.


Mas, se o conceito marketing de bem-estar tende nos países ricos a apresentar a vida como uma corrida em direção ao entretenimento, para a grande maioria da humanidade, aqueles que vivem do outro lado da fronteira deste novo apartheid, o único objetivo possível de sobra é de acessar à sobrevivência. Sem esquecer que a fraude deste grande supermercado da felicidade reside no fato de a felicidade vir sempre apenas como um extra. Qualquer atividade que a vise diretamente só pode produzir o seu oposto: quem persegue a felicidade está condenado à infelicidade. Seja porque essas imagens identificatórias de felicidade são impossíveis de alcançar, seja porque, mesmo que consigamos conformar nossas vidas a elas, ainda assim não conseguimos ser felizes. Em nosso tempo, o hedonismo e o utilitarismo tornaram-se os caminhos que levam ao mesmo abismo do niilismo.


Para os apóstolos da psicologia positiva, o indivíduo está obviamente no princípio e no fim de todas as coisas, o que faz desta indústria do bem-estar uma das mais eficazes promotoras do imaginário do sistema de valores neoliberal. Nesta perspectiva, o indivíduo autónomo e livre de escolha é também moralmente responsável pela sua própria realização, numa preocupação permanente de aperfeiçoamento de si. Se está deprimido, estressado ou em situação de fracasso, é porque lhe falta a força, a vontade e o autocontrole que lhe permitiriam eliminar os obstáculos que se colocam em seu caminho. Os coachs e outros ideólogos do bom funcionamento fazem do indivíduo um ser carente. E o que lhe falta é justamente o que lhe permitiria sair de seu estado de fragilidade. Agora, voltaremos a isso, não é a falta, mas o excesso que caracteriza o modo de ser dos organismos. E ao contrário do que afirmam esses pseudo-especialistas, as dificuldades, a raridade, o esforço, os acidentes não são simples peripécias no caminho da realização pessoal: são o caminho. É de fato uma perversão do nosso tempo considerar a fragilidade e, portanto, a vida, como algo indesejável ao vivente.


A existência caracteriza-se por este desacomodar-se permanente que identifica o ser com este esforço para: o que somos, devemos nos torna-lo. E qualquer objetivo, qualquer fim, assim como qualquer pergunta sobre o porquê, devem ser interpretados apenas como elementos imaginários que colocam o vivente em movimento rumo a um ponto desconhecido. E isso, não por cegueira alguma, mas simplesmente porque esse ponto não existe: o objetivo não pode ser diferenciado do percurso. Como escreve o poeta grego Constantin Cavafy, Ítaca está no caminho por Ítaca.Qualquer atalho, como qualquer visão puramente utilitária da viagem, certamente nos faria perder Ítaca (3). A finalidade é apenas uma dimensão do percurso que certamente o protege, mas permanece imanente a ele sem nenhuma existência fora dele. Qualquer ação voltada para a satisfação de nossas necessidades vitais está a serviço de um agir não polarizável e sem objetivo preciso : existir. Sem contar que qualquer ação linear com um objetivo claro é acompanhada por um feixe múltiplo de gestos e sensações que nunca é ordenado pelo utilitarismo. Preparar um café, uma refeição ou ir à padaria são atos e gestos que incluem dimensões ritualizadas através das quais a vida se desenrola. Para o vivente, ao contrário do artefato, o espaço que nos separa do objeto desejado bem como a forma de o percorrer, a laboriosidade e as dificuldades do percurso permitem que o objeto desejado exista. É por isso que o espaço e a duração do percurso dizem respeito a uma certa sacralidade, não no sentido metafísico, mas no de “nem tudo é possível”. As aspirações bárbaras de transgredir ou achatar essas dimensões ritualizadas e estruturantes da experiência do vivente falam de uma desorientação epocal onde tornar-se escravo passivo toma o nome de liberdade e autonomia.


No entanto, seria ingênuo opor ao atual desejo de imediatismo um elogio generalizado à lentidão. Pode-se, por exemplo, entender que o passageiro de uma ambulância dificilmente apreciaria que o motorista aplicasse os preceitos da lentidão. E devemos admitir que não há aceleração do tempo a qual deveríamos opor uma indolência artificial, a não ser de encontrar os sinais de alguma sabedoria em cada viajante que perde o trem. Gostem ou não os novos sábios da lentidão e os panegiristas da velocidade, às vezes é necessário correr e em alguns casos caminhar. Não se pode opor ou mesmo separar as dimensões de funcionamento e existência. O problema de nosso tempo é que não sabemos mais distinguir claramente esses dois modos de ser.


2 Friedrich NIETZSCHE, Par-delà le bien et le mal, § 16 et 17.

3 Constantin CAVAFY, Poènws, trad . du grec par Dominique Grandmo nt, Gallimard, Paris, 1999.


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